COUTINHO, João Pereira. A dignidade dos feios. Folha de S. Paulo, São Paulo, 24 Jul.
2012, Ilustrada, caderno E, p. E6.
Para começar, o mundo é dos belos. Negar para quê? Faz
parte da retórica bem pensante dizer que a beleza não é fundamental. Há quem
fale em até em “beleza interior” para compensar o estrago e atribuir uma
espécie de indenização ética ao sujeito. Não vale a pena mascar a verdade ou
confundir as verdades: a “beleza interior” pode ser relevante, e até mais
relevante, do que a superficialidade da carne.
Mas é para essa superficialidade que se olha primeiro –
ou que se rejeita primeiro. A idéia não pode ser agradável para quem pensa que
todas as desvantagens da vida são produto de uma “construção social”
defeituosa.
Infelizmente, a realidade não se ajusta a fantasias. A
natureza é um cassino. E nem tudo obedece aos caprichos igualitários do nosso
tempo: alguns foram bafejados pelo escopo da beleza – e outros, simplesmente,
não.
No filme Marty de 1955 estrelado pelo já falecido ator Ernest
Borgnine mostra um exemplo disso. Marty é gordo e feio. E nem sequer tem
fortuna pessoal para cumprir o demolidor aforismo de Nelson Rodrigues sobre o
assunto (“Dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro”).
Aos 34 anos, Marty é um solitário. E todos lhe perguntam,
ao balcão do açougue onde trabalho: “Quando casas, Marty?”. Pior: todos cobram
esse feito, como se existisse um prazer perverso na humilhação perversa dos
feios.
Marty escuta e sofre: em silêncio. Os irmãos arrumaram a
vida: têm filhos, mulheres, famílias. Casas nos subúrbios. Ele, Marty, continua a morar com a mãe. Que também
lhe pergunta: “Quando casas, Marty?”.
De vez em quando, ele sai com os amigos aos sábados à
noite. Para ver o mercado e testar a sua baixa cotação na praça. Mas Marty está
cansado de procurar companhia. Porque está cansado da rejeição.
“Marty” começa por ser uma pequena pérola sobre esse
grande tabu: a rejeição dos feios, a angústia que existe nessa rejeição, e o
cansaço de quem tentou uma vez, e outra, e outra ainda, para receber apenas
desprezo ou repulsa de volta. Poucos filmes captaram de forma tão digna e
pungente a tristeza da feiúra. Mas “Marty” vai mais longe e mostra como a vida
adulta é, sobretudo definida pelas escolhas que fazemos: escolhas nossas,
radicalmente nossas, mas tantas vezes ensombradas pela opinião dos outros.
Isso sucede quando Marty conhece finalmente um par. Clara
(Betsy Blair, no filme) é uma “outsider” como ele – feições modestas, igual
desesperança no afeto alheio. Mas é doce, atenta e presente, alguém com quem
ele fala sem parar na primeira noite. Marty encontrou alguém. Ele sabe que
encontrou alguém. Mas o exército dos solitários inicia suas operações: a mãe
viúva que teme o abandono do filho, os amigos celibatários que invejam a sorte
de um membro do clube, todos eles começam a encontrar defeitos na escolha de
Marty. E a dar palpites ou sugestões para desviar da sua rota.
Marty fica confuso, medroso, melindrado. Mas é quando se
encontra novamente só que a epifania acontece: a vida só lhe pertence a ele,
não ao coro grego que pretende determinar seu destino.
Moral da história?
Enganam-se os que pensam que a afirmação da
individualidade é sempre um ato heróico e prometeico, como nas óperas de Wagner
ou nos textos de Nietzsche. Grande parte da individualidade joga-se todos os
dias nas pequenas decisões anônimos que tomamos. Joga-se, no fundo, nesses
momentos em que pesamos a nossa covardia e a nossa coragem. E decidimos depois
seguir em frente.
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