quarta-feira, 25 de julho de 2012

MARTY




COUTINHO, João Pereira. A dignidade dos feios. Folha de S. Paulo, São Paulo, 24 Jul. 2012, Ilustrada, caderno E, p. E6.


Para começar, o mundo é dos belos. Negar para quê? Faz parte da retórica bem pensante dizer que a beleza não é fundamental. Há quem fale em até em “beleza interior” para compensar o estrago e atribuir uma espécie de indenização ética ao sujeito. Não vale a pena mascar a verdade ou confundir as verdades: a “beleza interior” pode ser relevante, e até mais relevante, do que a superficialidade da carne.

Mas é para essa superficialidade que se olha primeiro – ou que se rejeita primeiro. A idéia não pode ser agradável para quem pensa que todas as desvantagens da vida são produto de uma “construção social” defeituosa.

Infelizmente, a realidade não se ajusta a fantasias. A natureza é um cassino. E nem tudo obedece aos caprichos igualitários do nosso tempo: alguns foram bafejados pelo escopo da beleza – e outros, simplesmente, não.

No filme Marty de 1955  estrelado pelo já falecido ator Ernest Borgnine mostra um exemplo disso. Marty é gordo e feio. E nem sequer tem fortuna pessoal para cumprir o demolidor aforismo de Nelson Rodrigues sobre o assunto (“Dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro”).
Aos 34 anos, Marty é um solitário. E todos lhe perguntam, ao balcão do açougue onde trabalho: “Quando casas, Marty?”. Pior: todos cobram esse feito, como se existisse um prazer perverso na humilhação perversa dos feios.

Marty escuta e sofre: em silêncio. Os irmãos arrumaram a vida: têm filhos, mulheres, famílias. Casas nos subúrbios. Ele,  Marty, continua a morar com a mãe. Que também lhe pergunta: “Quando casas, Marty?”.

De vez em quando, ele sai com os amigos aos sábados à noite. Para ver o mercado e testar a sua baixa cotação na praça. Mas Marty está cansado de procurar companhia. Porque está cansado da rejeição.

“Marty” começa por ser uma pequena pérola sobre esse grande tabu: a rejeição dos feios, a angústia que existe nessa rejeição, e o cansaço de quem tentou uma vez, e outra, e outra ainda, para receber apenas desprezo ou repulsa de volta. Poucos filmes captaram de forma tão digna e pungente a tristeza da feiúra. Mas “Marty” vai mais longe e mostra como a vida adulta é, sobretudo definida pelas escolhas que fazemos: escolhas nossas, radicalmente nossas, mas tantas vezes ensombradas pela opinião dos outros. 

Isso sucede quando Marty conhece finalmente um par. Clara (Betsy Blair, no filme) é uma “outsider” como ele – feições modestas, igual desesperança no afeto alheio. Mas é doce, atenta e presente, alguém com quem ele fala sem parar na primeira noite. Marty encontrou alguém. Ele sabe que encontrou alguém. Mas o exército dos solitários inicia suas operações: a mãe viúva que teme o abandono do filho, os amigos celibatários que invejam a sorte de um membro do clube, todos eles começam a encontrar defeitos na escolha de Marty. E a dar palpites ou sugestões para desviar da sua rota. 

Marty fica confuso, medroso, melindrado. Mas é quando se encontra novamente só que a epifania acontece: a vida só lhe pertence a ele, não ao coro grego que pretende determinar seu destino. 

Moral da história? 

Enganam-se os que pensam que a afirmação da individualidade é sempre um ato heróico e prometeico, como nas óperas de Wagner ou nos textos de Nietzsche. Grande parte da individualidade joga-se todos os dias nas pequenas decisões anônimos que tomamos. Joga-se, no fundo, nesses momentos em que pesamos a nossa covardia e a nossa coragem. E decidimos depois seguir em frente.

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